OS FANTASMAS GREGOS E ROMANOS.
A civilização ocidental lembra-me um campo de futebol onde duas equipas, a grega e a romana, se defrontam para disputar esse perpétuo esférico que é o homem.De facto, o homem ocidental é e tem sido não mais do que o joguete das ideias que ora jorram da Castália grega, ora manam da augusta fonte romana.Que nos veio da Grécia? Alguém disse que o Cristianismo era o cisma hebraico do pensamento grego. Efectivamente, o Cristianismo não podia ser uma invenção de Roma mas só a Roma prática e temporal o podia tornar possível, actuante e poderoso.Dizem que o culto do corpo, o recebemos da Grécia. Mentira. O corpo grego é uma mistificação, uma fantasia de um idealismo descarnado, a medida de ouro de um pensamento que tinha de eclodir em Platão, uma perfeição abstracta que não fala aos sentidos. Os gregos tinham a mania de espiritualizar tudo. Até as acções mais impúdicas, como se depreeende de «O Banquete» e do licencioso comportamento dos deuses exemplares.
Que nos veio de Roma? Precisamente o contrário. A tendência para materializar as coisas do espírito. A vida objectiva a vida prática, a vida presente e também o cepticismo que deriva desta noção material da vida sem fim para além dela, sem qualquer espécie de alcance transcendente. Daí fazerem os romanos, da vida, uma festa permanente, um festim organizado pela mestria erótica de Ovídeo, o gozador que adverte os homens e as mulheres dos perigos de não agarrarem o momento que foge.Espírito e carne, Grécia e Roma, eis as duas heranças que vivem em perpétuo conflito na alma do europeu. Marcuse quer salvar o mundo à moda grega, socráticamente, catequizando os jovens para uma nova doutrina em cujo horizonte é reconhecível a utopia da República platónica. Por sua vez, os jovens fatigados de pregações espirituais, com cepticismo romano celebram a festa do corpo e Fellini denuncia os podres da nossa pomposa decadência, vestindo-a com a púrpura do crepúsculo romano. Homem! Deixa de ser grego, deixa de ser romano. Que tua alma cresça com o ritmo que crescem os edifícios com que arranhas os céus! Esqueces-te que vais à lua, à lua que os gregos chamavam Diana? Esqueces-te que violaste a deusa grega, demonstrando que ela era um montão de decepcionantes rochas?Que ideias, que princípios te darão o pontapé de saída para deixares de ser uma bola jogada por divindades mortas, para deixares de ser o campo de batalha dos ídolos que as tuas mãos, a tua ciência há muito destruíram. Para seres finalmente o que és.
Natália Correia: (NOTÍCIA DE ANGOLA), 27 de Setembro de 1969.